segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Texto (0.7)

Retrofilias Por Vir

Papai detestava a possibilidade sobre eventos ocorridos. Por isso sempre que eu usava um “se” para exprimir esse tipo de sentimento, papai me tascava uma frase feita que logo caía sobre a minha tentativa de supor alguma realidade paralela a partir do passado referido.

“Se minha mãe tivesse uma carreira de peito, seria uma porca!” Dizia papai nesses momentos.

Logo, trabalhar ou pensar essa possibilidade sobre um passado diferente baseado num “se” seria uma perda de tempo. Tanto para mim quanto para papai. Mas principalmente para papai; cortando logo o papo fazendo-me imaginar vovó com vários mamilos num corpo de uma porca.

A possibilidade sobre o evento já acontecido é um terreno perigoso. 

Com isso cresci evitando arrependimentos e sentimentos de arroubo nostálgico sobre o que eu faria caso coisas fossem diferentes; desde o simples lembrar do gosto da lasanha quentinha que titia e vovó preparavam, até mesmo as conversas de bar que seguem hoje sobre desenhos animados que víamos quando pequenos. Não me lembro do gosto do feijão preto que comia com arroz e farinha e limão enquanto assistia Digimon nos dias de semana que não tinha aula; nem mesmo da edição especial sabor uva do Frutilly que um menino que morava na minha rua derrubou com uma bolada enquanto jogavam o detestável futebol; também escolhi não lembrar das idas ao Horto de Dois Irmãos ver o leão chamado Simba com papai numa época em que tudo era mais simples; muito menos me lembro do cheiro do livro de Harry Potter e o Cálice de Fogo que eu tinha que esperar um evento grande como um aniversário ou natal para pedir de presente, então lia vorazmente num banco do Carrefour que estava montado pra receber as fitas de Monstros SA em seu lançamento, tudo isso enquanto titia fazia as compras da semana; e se não lembro de nada disso, não tenho como alterar essas rotas já traçadas e imemoráveis. Daí sigo cantarolando o que se resolve no presente, e planejando o ocaso da vida ao longo do caminhar.

Já a possibilidade sobre o evento que ainda não aconteceu é um terreno mais perigoso ainda.

Uma atriz e professora que tive o prazer de encontrar, comentou um erro nosso numa apresentação certo dia. O ocorrido se deu durante uma apresentação de um exercício cênico da nossa turma naquele semestre. A porta de um dos camarins tinha ficado aberta, e uma aluna-atriz, percebendo tal deslize, manteve-se serena (apesar dos tremores e fibrilações alvoroçados de seu interior) para a plateia que a via parcialmente.

A professora disse então uma pérola que resumia bem também o sentimento de papai; e o sentimento que acabei adquirindo ao longo do tempo.

“A cena se resolve na cena. Não tem outro momento.” Veemente.

Tomando como ponto de partida tais palavras fui buscar o entendimento dos “ses”. Compreender as ramificações do presente sem precisar de tal mira distante a ponto de perder de vista meus pés 44. Como num jogo de dardos esfreguei as mãos nas setas das possibilidades do que já foi, do que poderia ter sido, do que é, e do que pode ser. E botei todas essas cenas e vislumbres no bolso, afinal. Não lancei os “ses” para quaisquer direções. São danosos, sim? Já me foi revelado.

Ao futuro e passado dou-lhes presente. E não me interessam mais as reviravoltas do que foi, nem o esperar infinito pelo que está por vir. 

Basta-me o que é.

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