quinta-feira, 26 de março de 2015

Poesia (22.0)

A escada

Degraus gélidos
Acariciam minha pele seca.
Não fazem cócegas
As roupas folgadas.
Meu rosto repousa
No pisar latente
De milhões de vidas
Sugadas por fumaça
E cimento.

A escada que me abraça
É a mesma que outrora
Derrubava meu copo de leite
Com sua precisão compassada
De barulho de chuva
No meio do outono gasto.

Não caem folhas.
Mas acalmaram-se os carros,
As pessoas,
Os restos de comida;
A vida acalmou-se.

Triste era ver
Pelo canto do olho
O sangue da testa vazando
Pulsante
Escuro quase preto
Sem luz ou refração necessária;
Sabia que era sangue
Pelo cheiro viscoso de vida
Indo em boa hora.
Embora soubesse que a vida
Era uma carta que se espera
Ansioso,
Que chega quando é menos esperada;
Borbulhando,
Derramando o leite quente no fogão,
Esfriando na calada da noite os pés pra fora
Do cobertor dantes não usado.

A vida;
Presente que chega ao fim do dia
Envolto em papel bonito
Com cheiro de papelaria de bairro
E é rasgado ao meio,
Em quartos,
Em pedaços menores que quartos,
No chão do quarto,
Bagunçando o assoalho,
Deixando o rastro de felicidade e vida
Na marca latente
Dos pés de homens mal servidos
De felicidade e vida
Que construíram e edificaram
As escadas da minha felicidade e vida.

A vida como a escada
Daqui de casa
É massa dura
Que me abraça na madrugada
E me derruba o jantar.

Escolha minha subir e descer
Sem ajuda.
Marcando o passo das milhões de vidas
Que passaram nesse chão
Antes da minha;
Marcando o compasso da música dançada
Nesse chão mole
De mangue vivo
No qual sangraram
Homens vivos
Na terra agora morta
Por cima de homens mortos
Outrora vivos
Que nunca saberão
O que é
Uma escada.

Que me ocupe agora
Eu
Do balançar desse subir e descer
Pra saber achar,
Nessa busca incessante
Por claridade,
Abraçar também
O chão,
A vida,
O descer
E a escuridão.

Pois não só de claridade
Faz-se o dia.

Esqueceram-se de nos dizer
Que o balanço
Balança
Doze horas na luz que mata
E doze horas
No breu que descansa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário